… pois o querido vô Ricardo se juntou à sua amada…
Ele, alto, esbelto, pernas longas e fortes, braços incansáveis, olhar sereno, bigode fino e bem aparado. Sempre relaxado e tranquilo, pronto pra tirar uma sonequinha ou cuidar das plantinhas no seu quintal. Ela, pele morena, cabelos macios como algodão, olhar protetor e sorriso doce, estava sempre buscando algo pra fazer. Ressabiada como ela só, sempre achava que estava incomodando os outros, até mesmo na sua própria casa. Mas apesar das diferenças, os dois tiveram em comum a fé inabalável em Deus e o amor que sentiam um pelo outro, mesmo depois de mais de 60 anos de casados.
O Seu Ricardo adorava contar histórias. Contava dos tempos que trabalhava na roça em Faria Lemos, da mudança pra cidade grande com seus 9 filhos pequenos, do seu duro trabalho de faxineiro na Mannesmann (do qual nunca reclamou) e de como conheceu a Zezé… Seus olhinhos brilhavam ao contar que foi ela (né, Zezé? – como dizia ele) quem transformou a sua vida e o colocou no caminho de Deus. “Chega, Ricardo, todo mundo já sabe dessa história”, falava ela constrangida. Mas ele continuava contando… (Dá uma olhada nos videos abaixo, cedidos pela prima Esther)
E como com ele não tinha tempo ruim, mesmo quando a saúde já não lhe permitia, insistia em fazer “estripulias”… Se não ficassem de olho, já ia ele com seu carrinho de mão cheio de massa pra reparar mais um rebôco da casa de um inquilino… Ou caminhar até a praça do bairro e voltar com duas sacolas pesadas de compras depois de ter feito pesquisa de preço em três diferentes supermercados… Ou caminhar sozinho até uma das favelas das redondezas pra fazer mais uma visita pra uma família necessitada…
E ele, que tinha o coração maior que o mundo, acolheu tanta gente, que chegava a esquecer de si próprio.
– Pai, tem gente na porta pedindo comida, mas a despensa tá quase vazia…
– Dá um cadiquinho de fubá pra ela, minha filha. Dá um tantinho de arroz e umas bananas… Não vai faltar pra gente.
* * *
E assim como ele tinha inúmeras histórias pra contar, também fazia parte de várias outras (né, tio Mateus?). Se é verdade, nunca vou saber, mas corre em boca miúda ser verídico essa e mais tantas outras histórias:
Tio Mateus: Ô pai, o senhor já ouviu a conversa dos dois cumpadres surdos?
Seu Ricardo: Não, Mateus, qualé essa?
Tio Mateus: – Ei cumpade! Tá indo pescá?- perguntou o primeiro
– Não, cumpade, tô indo pescá – respondeu o outro
– Ó, pensei que cê tivesse indo pescá.
Seu Ricardo: Num pesquei nada!
* * *
Também me lembro de uma conversa nossa, dos tempos que eu trabalhava na Venezuela e fui visitar o Brasil.
Ele: Ô minha filha, e qual é mesmo a capital da Venezuela?
Eu: É Caracas, vô.
Ele: Ah, é Caracas… – e depois de um tempo matutando, disse rindo: E esse nome é porque lá todo mundo tem caraca, minha filha?
* * *
Sem falar em algumas das frases célebres que ele deixou: “Firma no talo, cumpadre Henrique!”, “Deixa comigo que esse eu pego, Zezé!”, “Cês tão que nem Cael e Abim!”, “Isso é falta daquele lá de cima!”
* * *
E assim era o vovô Ricardo… simples, correto e humilde. Um grande exemplo e inspiração de vida pra todos que tiveram a honra de cruzar o seu caminho. Um homem de bem que conheceu a felicidade nas coisas simples da vida e viveu exatamente o que pregou: o amor a Deus e ao próximo. “Sem aquele lá de cima não somos nada, minha filha!”
O texto abaixo da Esther retrata com perfeição a essência do Seu Ricardo:
“pensar no meu avô me faz entender minha teimosia.
tenho certeza,
a minha teimosia é dele!
seu Ricardo, é a imagem da ternura!
o bigode bem aparado fica na beiradinha da boca
parece que escorreu até lá sozinho!
os olhos verdes pequenos sorriem pra quase tudo
em todas as visitas ele batuca os dedos compridos no forro colorido da mesa!
pensativo.
ouve pouco o que a gente fala!
mas imagino que dentro da cabeça dele existem muitos personagens reais vivendo causos antigos. e ele os ouve bem!
sempre que batuca na mesa, pensativo, em seguida ele conta um causo.
vez ou outra esses causos o fazem lembrar da morte.
quantos dos seus personagens já se foram, seu Ricardo?…
foram muitos!
às vezes ele conta nos dedos.
meu avô conta a morte nos dedos.
mas, como um bom Azevedo, ele sente na palma envelhecida da mão a sua vida longa!
e sorri novamente, agradecendo a Deus por tudo!”
* * *
Obrigada vô, por ter sido parte da nossa vida!
E obrigada a toda essa família forte e unida que tanto apoiou e cuidou da vó e do vô nos últimos anos, em especial nos últimos meses. Vocês são maravilhosos e cada vez sinto mais orgulho em fazer parte desta linda familia! Tia Rita, um abraço especial pra você. Seu desprendimento, dedicação e amor me fazem sentir uma profunda admiração por você. Obrigada por garantir a eles amor, respeito, carinho, comidinha gostosa e saudável e atenção até os últimos minutos da vida deles…
E que Deus conforte o coração de quem fica!
E os anjos do céu? Ah, esses agora tocam sanfona (e não trombetas!) dia e noite…
Vô Ricardo – 01 Abr 1918 – 25 Nov 2009