(Veja a primeira parte do relato aqui.)
A hibernação
Bem que me disseram que a partir da segunda vez o corpo já sabe o que fazer. Tava eu lá, com 40 semanas e 1 dia, sem contração, sem nesting, sem nada. Vou despretensiosamente pra minha consulta semanal com a midwife e pimba: 3 cm de dilatação. Eu, a mesma pessoa que outrora sentiu 5.437 horas de dor pra dilatar 2 cm, se encontrava naquele exato momento e sem o mínimo esforço, 3 cm dilated, como disse ela. Uma serenata para os meus ouvidos.
“Então, vou pra casa hibernar que tem tudo pra eu acordar amanhã e encontrar Liloquinha do meu lado auto-nascida, auto-mamante e quiçá auto-desfraldada” pensei, já me sentindo toda ursa.
Hiberno.
10 horas da noite, coliquinhas, pequena dor nas costas, sensação de quadris se estirando. Fofura, Liloca já tinha começado a parte pesada da sua jornada de trabalho. Sorrio, bato o cartãozinho dela, anoto a hora ainda de olhos fechados, continuo a hibernar.
1 da manhã, estado hibernante semi-profundo, cólicas um pouco mais fortes. Abro o canto do olho, pego o celular, escrevo pra minha doula. Melhor prepará-la. Volto a dormir apesar das leves contrações. Eu tava curtindo esse negócio de ser ursa!
5 da manhã, opa! O negócio tá ficando mais forte, mas ainda sob controle! Continuo deitada, olhos fechados.
5.10 da manhã. Estado hibernante em risco. Foco, foco, preciso de foco. Mentalizo cor azul, floresta, lago, gnomos, elfos, Gollum e nada. Ah sim, Lily! Visualizo a Lily descendo, a pélvis se abrindo, a dor indo embora. Ufa! Essa foi por pouco!
5.15 da manhã. O bicho tá pegando. Começo a respiração diafragmática. Inspiro… tá doendo. Expiro… eu posso, sou ursa. Inspiro… isso aqui tá ficando forte. Expiro… sou ursa, sou capaz. Inspiro… aijesuis, não vou dar conta. Expiro… dou conta sim, sou animal hibernante, peludo, peso 400kg, vou parir, nem vou sentir. Inspiro… que dor mutante é essa? Expiro. Palhaçada esse negócio de ser ursa, tá doendo pra caraleo!!!
Me levanto e vou fazer alguma coisa que preste.
Entro no chuveiro, Rafa liga pra midwife. Ela e a doula estão à caminho.
*
O trabalho de parto/equipe
Lá fora, fazia um frio de rachar. Eram 8 da manhã e o sol começava a nascer. A luz entrava pelas janelas da sala e eu sentia uma gostosa sensação de felpudo (conhece?) que eu jamais vou esquecer. Nic estava em casa, sabia que a irmãzinha estava chegando, mas brincava quietinho com a vovó, lá no quarto dela. Nao sei o que teria feito sem ela!
De uma só vez chegam a doula, a midwife, as contrações descabelantes e as lágrimas de emoção. A Lily estava a caminho!!! Eu estava com 6 cm de dilatação, contrações a cada 3-4 minutos, e ainda conseguia controlar a dor se eu ajoalhasse e me reclinasse pra frente, mexendo os quadris. Mas as coisas estavam progredindo rápido demais e 15 minutos mais tarde, as dores ja alcançavam um outro patamar – o patamar das contrações mutantes, durante as quais eu quase não conseguia encontrar uma posição que amenizasse e nem mesmo conseguia falar direito.
Eu adentrava os portões da Partolândia. Foi aí que decidimos ir pro hospital.
E como foi dificil o trajeto até lá! Descia a escada, uma contração. Vestia o casaco, mais uma. Calçava a bota, todo mundo vinha me ajudar mas mesmo assim quase não consegui, a dor estava a nível paralizante e ter que pensar e fazer algo à mais naquele momento, mesmo que simples, estava quase impossível. Fui em direção ao carro e mais uma me pega. Ah! O Nic! Tenho que me despedir dele. Volto pra dentro de casa e entre uma contração e outra consigo dar um beijo nele e dizer que eu estava indo pro hospital pra Lily nascer. Com uma carinha compreensiva ele diz “tá bom, mamãe” e volta a brincar. Valeram os livrinho e conversas que tivemos nas últimas semanas! Volto pro carro, entro e a posição nao podia ser pior. Reclino o banco, me deito de lado e vamos!
No hospital, fui imediatamente pra banheira. A água quente amenizou as dores a principio, mas nao por muito tempo. Daí, eu só queria saber de gritar e quando eu gritava me esquecia de respirar como devia. Ainda bem que eu tinha minha super equipe pra se revezar e me dar todo o suporte que eu precisava, todos sempre olhando nos meus olhos, me lembrando o ritmo da respiração, segurando minhas mãos. Me senti realmente acolhida e segura, mas as dores estavam fortes demais e me lembravam muito as piores dores que senti no parto do Nic. Eu fui entrando em pânico.
A midwife então percebeu que eu estava perdendo o controle da situação e junto com a doula diziam pra eu repetir: “I can do it, I can do it” (eu consigo fazer isso). Só que à medida que o tempo passava, minha vontade era de chorar. Eu repetia aquelas palavras mas não sentia seu impacto. Por dentro eu chegava à conclusão que meu destino seria Madagascar.
(Pena que eu não tava pra brincadeira naquela hora, senão podia ter começado a cantar “aiêêê, Madagascar Olodum! Aiêêê, eu sou o arco-íris de Madagascar!“. Seguro que teria me relaxado um pouco. :D)
Mas enfim, de repente o inesperado aconteceu e as contrações que vinham a cada 2 minutos, passaram a vir cada vez mais espaçadas e fracas. Porque? Era eu mesma sabotando o processo inconscientemente. Aquela coisa chamada poder da mente, só que com ação contrária. Então a midwife veio conversar comigo. Ela segurou minhas mãos, pôs a outra no meu rosto, olhou nos meus olhos e disse que eu estava fazendo um lindo trabalho e que tudo bem sentir medo, mas eu precisava encontrar uma forma de me libertar dele e deixar a Lily nascer. Foi aí que eu proferi minha palavra mágica. Com isso, ela se levantou e disse que iria providenciar tudo, mas que só tinha um problema: o anestesista estava no meio de uma cirurgia e ela não fazia ideia de quando ele estaria liberado pra me atender.
Eu não sei exatamente quanto tempo mais fiquei ali na banheira, só sei que o anestesista apareceu por volta de 12:30. Talvez eu tenha ficado duas ou três horas naquele estado de vai não vai, renovando a água quente, tentando várias posições e ainda sofrendo com cada contração. Durante esse tempo cheguei a pensar várias vezes que fosse conseguir parir sem anestesia, mas quando a contração vinha forte demais eu me contraia ao invés de relaxar e isso fazia com que a dor ficasse ainda pior. E apesar das palavras de encorajamento de todo mundo, eu sentia que só relaxaria depois da analsegia. E estava em paz com minha decisão.
Por isso, quando ouvi que o anestesista tinha saído da cirurgia meu rosto se iluminou na hora. Finalmente me senti feliz de novo! Enquanto ele preparava minha injeção a midwife checou como estava a Lily e pra nossa surpresa, ela estava mal posicionada. “Ahhhh, eu sabia. Não era à toa que eu sentia aquela conhecida dor, a dor do mal posicionamento bebezístico”, pensei. Aleluia! Aos poucos meu bom humor estava voltando.
E como eu estava fora da banheira, as contrações começaram a vir avassaladoras. Nao vinham como simples ondas, mas como tsunamis gigantescos. Eu gritava enlouquecidamente, enquanto a midwife me pedia pra ficar de quatro e ajudar a Lily a se encaixar. Eu tentava, mas mais parecia uma maluca descabelada. Até que por um segundo eu olho pro meu lado e vislumbro a imagem turva de um anjo se aproximando. “E então, vamos acabar logo com essa dor?”, proferia a figura angelical em câmera lenta.
Um minuto depois eu adentrava as portas do paraíso. Foi aí que ri pela primeira vez em horas, que eu consegui olhar pro rosto de cada um que me acompanhava e me sentir eternamente grata por tudo o que tinham feito por mim até aquele momento. Agora sim, eu enxergava a Lydia, a midwife mais doce e dedicada que eu podia querer, a Lana, minha doula de mãos mágicas, meu amado Rafa, sempre presente, o rosto sorridente do anestesista, enfermeira Lilian que dali pra frente também me acompanharia, a paisagem incrivelmente linda pela janela e… o pacote de castanhas que rapidamente se esvaziava ao ataque da minha equipe faminta. Já passava de 1 da tarde!
– Não sei dizer com certeza, mas algo me diz que vocês estão com fome, huh?
Todo mundo riu aliviado. Meu bom humor estava de volta.
Dali pra frente foi tudo alegria. Conversas alegres, muita risada e o melhor, eu continuava sentindo cada contração, mas sem sofrimento, sem tensão, sem medo. Os batimentos cardíacos da Lily continuavam ótimos e eu sentia um alívio e leveza tão grandes que tudo o que eu queria era rir, gargalhar, celebrar.
Por fim, eu me tornava ursa de verdade. Quem diria? Talvez, não do tipo que pare hibernando, ou do tipo que pare sem anestesia, mas certamente do tipo que pare tranqüila. Eu estava pronta pra continuar.
A posição na qual me senti mais confortável foi deitada meio de lado, com a cama inclinada na frente. Nessa posição, a Lily finalmente se encaixou direitinho e logo depois comecei a sentir vontade de empurrar. E como eu também queria ter o cuidado de proteger a minha bexiga, que tinha descendido um pouco após o parto do Nic, cada empurrão foi o mais suave que consegui e mais direcionado ao final de cada contração, segundo recomendação da fisioterapeuta.
Só nesse momento minha bolsa estorou. As contrações ficaram mais fortes e logo em seguida eu senti a cabeça da Lily saindo. Pus a mão e “quanto cabelo!!!”, eu disse admirada. Tudo o que eu sabia era rir, parecia uma louca parideira. A Lydia disse que era a primeira vez que ela acompanhava um expulsivo tão descontraído. Então, passei a acompanhar a saída dela por um espelho e numa contração a cabeça saiu. Indescritível a emoção que senti. O mais lindo de tudo, era que a Lily trazia uma das mãozinhas grudada no rosto, da mesma forma que vimos nos ultrassons e como ela passou seus primeiros dias de vida depois, sempre com as mãozinhas na bochecha. Fofa, fofa, fofa!
E antes mesmo do resto do corpo dela sair, ela chorou. Um choro forte e alto. Mais uma contração e o corpo sai. Eu consegui!!! Minha filha tinha nascido!
Ela vem imediatamente pro meu colo ainda chorando, eu chorando, várias pessoas chorando. Foi uma choradeira geral, misturada com riso, claro. Era o dia 3 de fevereiro, 2:09 minutos da tarde. Foi só quando vimos nossa florzinha pela primeira vez que contamos o nome dela pra todo mundo: Lily. Que coincidencia, pois ali estavamos eu, Luciana, a Lydia, a Lana e a Lilian. Todas com “L”.
A Lily ainda chorou por mais um tempo, linda… eu e papai ali namorando aquela carinha meio enrugada, a testa franzidinha, os olhinhos fechados, vermelhinha, a boquinha aberta mostrando a língua dobrada pra cima e aquele tanto de cabelo… Tão diferente do Nic à primeira vista!!! Quando ela parou de chorar, abriu os olhos que pareciam negros e instintivamente começou a buscar o peito. Mamou ali mesmo, por uns 20 minutos, enquanto o cordão era cortado pelo Rafa. Depois ela caiu capotada. Bem vinda ao mundo, florzinha!
Nisso, voltei a sentir mais algumas contrações. Era a placenta. Fiz um pouco de força, ela saiu, mas com ela começou uma forte hemorragia. Enquanto o Rafa ficou com a Lily ali do meu lado, elas me deram uma injeção pra parar o sangue. A Lydia parecia um pouco assustada mas eu me sentia bem.
Enquanto minha laceração (de segundo grau e que ocorreu ao longo da antiga epsiotomia) era suturada, a Lily tomava a vitamina K e ia sendo pesada, medida e limpada. Mas só foi tomar banho mesmo por volta da mesma hora no dia seguinte.
* * *
De resto, com a Lily foi tudo muito mais fácil. Passei somente aquela noite no hospital, tomei banho sozinha tranquilamente, comi feito ursa desibernada (ou seria desembestada?) por uns 5 dias seguidos, Nic e vovó foram nos visitar no mesmo dia que a Lily nasceu (e eu quase mordi a mão dele porque ele queria comer da minha comida – poxa, eu disse que tava faminta! :)), tomei muito complemento pra repor o ferro nos meses que se seguiram e apanhei bastante por umas 2 ou 3 semanas pra amamentar a Lily – mas consegui!
Hoje, Liloca já esta quase completando 5 meses. É sorridente, brava, adora um colo e é cabeluda como uma ursinha. Até duas semanas atrás, parecia ter sono 24 horas por dia. Há quem diga que os nenéns são assim. Eu tenho pra mim que é culpa do gene hibernante. Heranças da mãe ursa. Não disse que tinha virado uma?
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